8 de janeiro de 2017

DA ÁRVORE VEM A FLOR E DO ESPÍRITO O AMOR

Gostaria de ser um feiticeiro ou bruxo, aquele que enxerga através das sombras do inconsciente. Como não sou, escrevo. O escritor brasileiro Guimarães Rosa (1908-1967) reconhecia que poesia e magia eram irmãs, e confessava abertamente ser um alquimista que trabalhava com o sangue do coração humano. E acho mesmo que foram seus sucessos alquímicos que o levaram à morte aos 59 anos. Deus percebeu que, se ele vivesse um pouco mais, acabaria por descobrir o segredo do poder divino de falar e fazer acontecer, que é a essência da magia. Feiticeiros são aquelas pessoas que carregam o poder de falar e fazer acontecer, trazem o poder da magia nas palavras. Se alguém duvida que o escritor seja um feiticeiro que se entrega ao prazer supremo de escrever, leia o poeta e escritor português José Saramago (1922-2010). Eu ficava angustiado só de pensar na possibilidade da sua morte. Infelizmente ele faleceu no mesmo ano que minha mãe (2010). Para mim se Saramago parasse de escrever, ficaria para sempre triste, pensando no mundo fantástico, que moravam na sua alma e que não tiveram tempo de nascer.

Talvez seja esta a razão por que Deus criou o mundo, só para ter o prazer de ler os livros que o coração bruxo é capaz de escrever. Porque as histórias não são invenções dos homens, não lhes pertencem. Flutuam livres no espaço como o vento, e vão aparecendo aqui e ali, e se deixam contar de diferentes formas, como se fossem variações de um tema eterno que a ninguém pertence e que pertence a todos. Uma estória que marcou muito para mim, foi contada pelo escritor colombiano, Prêmio Nobel de literatura, Gabriel García Márquez (1927-2014), sob o título: “O Afogado Mais Lindo do Mundo”. Ele mistura ficção com realidade, uma estória fantástica que vou contar. Conta-se que numa aldeia de pescadores perdida no fim do mundo, onde a vida tinha sido engolida pelo tédio, e tudo era o mesmo, e se sabia de antemão o que cada um iria falar, os homens e as mulheres enfadados do amor, pois dele se haviam esquecido, e viver não era melhor que morrer.

Foi então que apareceu na praia um corpo de um afogado. Tinha que ser enterrado. E o costume era que as mulheres preparassem os cadáveres para a sepultura. E foram isto que fizeram os homens de fora, por medo da morte, as mulheres lá dentro, limpando aquele corpo das algas e das coisas verdes do mar. E o silêncio era grande porque sobre o morto desconhecido não há o que falar. Até que uma delas notou que ele era alto demais, e comentou que se ele tivesse vivido na aldeia teria de ter abaixado sempre a cabeça para entrar em suas casas. No que todas concordaram. Foi então que outra olhou para sua boca silenciosa, e perguntou a todas sobre as palavras que dela teriam saído. Seria como o barulho das ondas ou como o sussurro da brisa? E os seus corpos arrepiaram, só de pensar no seu sopro quente aos seus ouvidos e sorriram. E se ouviu então a voz de uma terceira que falava sobre aquelas mãos inertes, tão grandes. Teriam sido ternas? Teriam sabido agradar e acariciar? Teriam sabido abraçar? E todas riram.

Os maridos, de fora, perceberam que o corpo morto do afogado tinha um poder sobre o corpo vivo de suas mulheres que nem mesmo eles possuíam. Quem estaria mais morto? E tiveram inveja do morto com quem sonhavam e seus corpos ficaram mais altos, seus rostos, mais francos, suas mãos, mais bonitas. Termina a estória dizendo que finalmente enterraram o morto. Mas a aldeia nunca mais foi à mesma. No evangelho tem a lenda de um tanque mágico. Vez por outra, inesperadamente, um anjo descia dos céus e agitava as águas. O primeiro a entrar na água ficava curado. Da árvore brota a flor e através do espírito vem o amor. Vez por outra, inesperadamente, essa flor cai, e aquele que apanhar e presenteá-la a um espírito será agraciado pelo amor.

Por conseguinte, conta-se também de outro morto que volta quando se come o pão e se bebe o vinho. Segundo se acredita, quando isto acontece os velhos viram crianças, os pesados se põem a voar, os esquecidos do amor se põem a amar, os mortos voltam a viver. Fico no meu canto, rindo, imaginando o prazer do feiticeiro que, malicioso, bolou todas estas coisas, contando a mesma estória da terra onde o nunca é sempre, pensando que talvez, os moradores de outra aldeia, assentados diante da televisão, criarão coragem, e as mulheres comerão da flor e se esquecerão de vassouras e Shopping Centers para ficar mais bonitas e os homens, políticos corruptos, políticos tolos, educadores domesticados, avarentos mesquinhos. Enamorar-se-ão da lua, ficarão leves e aprenderão a voar nas asas do amor.

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