23 de março de 2014

O MITO DA SEXUALIDADE HUMANA

Para compreender com maior profundidade a condição humana, ao ler o livro “Mito e Sexualidade”, do escritor e jornalista americano Jamake Highwater (1942-2001), analisando a interpretação fenomenológica e hermenêutica do autor, percebe-se que ele nos concede importantes elementos que possibilitam a construção de novas significações para a sexualidade humana. Esse trabalho de Highwater, na verdade é fruto das contribuições das ciências humanas a partir do século XIX e mais especificamente, das contribuições advindas das leituras marxistas, que naquele momento tiveram como protagonista o filósofo, mitólogo e pesquisador romeno Mircea Eliade (1907-1986), no que se refere à mitologia e religião. Tendo em vista, que o marxismo foi decisivo para a superação da matriz positivista a que estava subjugada a compreensão dos mitos. Até então os mitos eram tidos como uma pré-consciência para os ocidentais. Como uma irracionalidade, foi o marxismo que nos permitiu conceber os mitos, não como uma consciência pré-racional, mas, sobretudo, como uma outra racionalidade.

Entretanto, a inversão epístemológica trazida pela filosofia marxista, parte do pressuposto de que não é a consciência dos homens que determina a sua existência, mas, as condições materiais, ou seja, a existência dos homens que determina a sua consciência. Deste modo, a partir desse pressuposto, os mitos puderam ser concebidos como outra forma de racionalidade, isto na medida em que expressam simbolicamente, em outra linguagem as relações sociais, políticas e econômicas de uma determinada cultura. Bem entendido, os mitos são reflexos da condição histórica-material de cada sociedade.

O autor abre o primeiro capítulo “O sexo como destino e o destino como sexo” expondo sua preocupação com a ideia que nós ocidentais fazemos da sexualidade. Ele demonstra historicamente que na verdade, a compreensão que temos sobre a nossa sexualidade, basicamente a entendemos como pulsão inata, universal, perigosa e imutável, fixou raízes no século XVII como a invenção do conceito de “homem natural”. E que com a superação do paradigma mecanicista que lhe deu origem, a ideia de homem natural resistiu ao tempo, passando por diversas culturas, culminando com a concepção freudiana sobre a sexualidade, por isso, hoje, extremamente difusa no pensamento contemporâneo.

Dentro desta concepção acredita-se, entre outras coisas, que há uma nítida distinção comportamental e existencial entre homens e mulheres, selada desde o nascimento pelos genitais. Sendo que, ao nascer somos reconhecidos como homens e mulheres pelos genitais, nossa primeira identidade. Aos genitais também estão relacionadas às ideias do sexo como força natural obsessiva que domina a maioria dos atos e decisões humanas.

O autor visa superar essa ideia ocidental da sexualidade, negando a ideia defendida por Freud de que “anatomia é destino” (onde a estrutura anatômica do nosso corpo, nossa diferenciação sexual determinam o destino de nossa experiência). O autor propõe que a sexualidade seja compreendida como um produto de forças sociais e históricas, como uma unidade imaginária. Nestes termos, como uma invenção do espírito humano. Na mesma linha de raciocínio, que Highwater compartilha com Michel Foucault, seu principal interlocutor, a ideia de que a sexualidade é uma “elaboração histórica” e que para compreendê-la é necessário explicar o contexto que lhe deu origem.

Pois, segundo Highwater, o mito está na base e da a forma as estruturas e aos valores da sociedade. A outra questão metodológica a ser considerada nesta tese, e subtraída pelo autor das lições do relativismo, é o uso do choque de contraste entre distintas culturas, para o questionamento da relação entre mito e sexualidade na sociedade ocidental, tendo em vista que nada nos estimula mais a repensar as coisas que julgávamos adquiridas a nosso respeito, do que o contraste entre a nossa visão do mundo e a de uma cultura inteiramente diversa. A lição que o relativismo cultural nos ensina é que a mitologia é o simbolismo sexual que nela assenta e varia enormemente de época para época e de lugar para lugar.

No segundo capítulo, “A base mítica dos valores sexuais”, Highwater dedica-se ao aprofundamento das questões metodológicas que embasam seu texto, explicando minuciosamente as principais categorias que dão corpo a sua tese, tais como: “a definição de sexualidade, de mitologia, de ritual, a definição do corpo como metáfora social e mais uma vez, a discussão sobre a importância do método e do contraste entre culturas diversas na abordagem da sexualidade”. Para fundamentar sua tese, Highwater usa com abundância exemplificações de determinados fenômenos como a castidade, a bissexualidade, a masturbação, em distintos momentos históricos e em culturas variadas. Tal fato, a despeito de construir uma leitura muito rica e prazerosa, torna ao mesmo tempo muito dificultosa sua sistematização, exigindo do leitor bastante cuidado para que não se perca nas viagens explicativas, em detrimento da real contribuição teórica contida no texto.  

Segundo o autor, a sexualidade, como já discutimos anteriormente, deve ser compreendida como um fenômeno culturalmente determinado, partindo das contribuições da história e dos estudos do corpo humano, Jamake Highwater constrói a tese de que o corpo humano deve ser encarado como uma metáfora da sociedade. Para ele, há uma forte correlação entre o modo como as pessoas vêem seu corpo e o modo como vêem a sociedade a que pertencem.

O eixo estrutural desta tese consiste na relação entre mito, ritual e sexualidade; sendo assim, o próximo passo será o entendimento do que seja a mitologia para Highwater. Entretanto, para explicar o que entende por mitologia, o autor dialoga com o especialista Devid Maclagan, com quem compartilha a ideia de que o mito é: “quer na sua estrutura profunda, quer no seu conteúdo superficial, o mito tem que ver com uma relação composta entre corpo-espírito e a palavra-mundo”. É metafórico não no sentido do emprego das chamadas figuras de estilos, artifícios de mera retórica, mas no sentido etimológico da palavra; o de transpor as fronteiras de conveniência que nós estabelecemos entre os sexos, as estações, as espécies e as estrelas. Esse vazamento metafórico de informações não se efetua de modo consciente, tampouco é peculiar ao mito: penetra em flagrante tudo o que fazemos, todas as percepções que sentimos mesmo no ramo mais estritamente especializado da ciência.

E para não deixar dúvidas ao leitor, Highwater equipara a função e o significado da mitologia com o significado do conceito de novos paradigmas. Entretanto, os rituais podem, em suma, ser entendidos como elementos grupais de legitimação dos costumes, ou seja, eles sancionam a estrutura das relações sociais, dando-lhes expressões visíveis e deste modo, nos permite conhecer nossa própria sociedade. Sendo assim, nos importa agora analisar junto a Highwater, o processo pelo qual os ritos do sexo comportam dentro de si os valores míticos da sociedade. Fica evidente que no decorrer do texto, que a nossa visão da realidade é povoada de mitos e que estes mudam no tempo e no espaço, assim como mudam também os ritos do sexo e, por conseguinte, a visão sobre nossa corporeidade, visto que, o corpo é constantemente transformado pelo fluxo da mentalidade mítica.

Portanto, a tese de Jamake Highwater fundamentada na fenomenologia, mesmo assim, seja passível, com certa facilidade, de uma interpretação materialista-histórica de seu conteúdo. Para melhor aprofundamento e fazer esta leitura materialista da sexualidade, é interessante ler o livro: “Desvendando a Sexualidade”, do filósofo e educador Cesar Nunes, pois, ao tratar da história da sexualidade humana ele estabelece uma divisão textual que segue basicamente a mesma lógica temporal de Jamake Highwater, porém, consubstanciada nos trilhos da economia e não da mitologia, com fator determinante na concepção da sexualidade. 

9 de março de 2014

AS TRÊS GRANDES PAIXÕES DA VIDA

A vida de Bertrand Russell (1872-1970), filósofo, matemático e lógico inglês, abrange um período enorme, quase um século, estendendo-se da Inglaterra Vitoriana à era Espacial. Ele era uma espécie de relíquia vitoriana. Morreu de gripe três meses antes de completar 98 anos, produzindo conhecimento. Defensor de ideais pacifistas, humanitário e da liberdade de pensamento, autor do livro: “O Casamento e a Moral”, argumentava ele que o fator primordial da moral sexual na civilização ocidental, desde os primórdios do cristianismo, consistiu na garantia da virtude feminina, indispensável à família patriarcal. 

Analisava os fundamentos sociais, econômicos, religiosos e culturais da instituição do casamento. Russell não via razão, por exemplo, para condenar duas pessoas que se amam, apenas porque tiveram relação sexual fora do casamento. Além disso, afirmava para o horror dos moralistas de sua época, que uma aventura extraconjugal não deveria ser motivo de escândalo e ruptura. Tendo em vista, que a chave da compreensão das relações extraconjugais, passa primeiro pela imaginação do objeto desejado que é transformado pelos amantes na idealização da felicidade.

O fascínio que Russell exerceu sobre o público dependeu de numerosos fatores. Para além da sua longevidade, há muitas outras facetas que o tornaram único. Grande matemático e filósofo, apóstolo da paz e discutida figura política que era, Bertrand Russell alcançou um enorme prestígio mundial. Era o nonagenário que cativava os mais novos e inspirava os mais velhos; um aristocrata que desprezava a Câmara dos Lordes e se arriscava a ser preso; um anarquista por temperamento que desafiava o poder constituído; um ateu que traçou armas contra o dogma religioso e a moral convencional; um matemático e lógico cujas equações destronaram Euclides; um filósofo que procurou tornar a filosofia acessível aos leigos; finalmente, foi agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1950, cuja a elegância de estilo, agudeza de ironia e destreza mental remontam a uma época em que se cultivava a arte de conversar e de escrever cartas.

Entretanto, Bertrand Russell é considerado um pensador excepcional, particularmente pelas contribuições que deu à filosofia da matemática. Tem uma vasta obra de cerca de 40 volumes. A sua atividade como filósofo, como homem da ciência e como político fazem dele uma das figuras mais prestigiadas, admiráveis e discutidas de todos os tempos. Contudo, encerro essa reflexão com um delicioso texto de Bertrand Russell. Que é uma verdadeira obra de arte em prosa. Ofereço a todos que cultivam pelo menos uma das três paixões:

Três paixões, simples, mas irresistivelmente fortes, tem governado a minha vida: o desejo imenso de amar, a busca do conhecimento e uma insuportável compaixão pelo sofrimento da humanidade.

Essas paixões, como os fortes ventos, levaram-me de um lado para outro, em caminhos caprichosos, para além de um profundo oceano de angústias, chegando a beira do verdadeiro desespero.

Primeiro busquei o amor, porque ele traz o êxtases tão grande que sacrificaria todo o resto da minha vida em troca de umas poucas horas desse prazer. Procurei-o também, porque ele abranda a solidão, aquela terrível solidão na qual uma consciência em pedaço se paralisa nas margens do mundo, o insondável e frio abismo sem vida.

Procurei-o finalmente, porque na união do amor vislumbrei, em mistica miniatura, a suposta visão do paraíso que santos e poetas imaginaram. Isso foi o que procurei e, embora pudesse parecer demasiado bom para a vida humana, foi o que finalmente encontrei.

Com a mesma intensidade busquei o conhecimento. Desejei entender o coração dos homens. Desejei saber por que as estrelas brilham. E tentei apreender a força pitagórica pela qual o número se mantem acima do fluxo.

Um pouco disso, não muito, conquistei. Amor e conhecimento, até onde foram possíveis, conduziram-me aos caminhos do paraíso. Mas, a compaixão sempre me trouxe de volta à Terra. Ecos de gritos e de dor refletiram em meu coração. Crianças famintas, vítimas torturadas por opressores, velhos desassistidos como um odioso fardo para seus filhos, e o mundo inteiro de solidão, miséria e sofrimento, transformam em arremedo o que a vida humana deveria ser.

Portanto, anseio ardentemente aliviar o mal, mas não posso, e também sofro. Esta tem sido a minha vida. Achei-a digna de ser vivida, e prazerosamente a viveria outra vez se uma nova oportunidade me fosse oferecida”.

AS COISAS SÃO OS NOMES QUE LHE DAMOS

O que é que você está fazendo com a sua solidão? Quando você a lamenta, você está dizendo que gostaria de se livrar dela, que ela é um sofri...