14 de agosto de 2016

ACEITAR SEM VONTADE É A MORTE

O individuo acomodar-se ás suas fraquezas e vícios de personalidade sem qualquer discussão, isto não é o que filosoficamente chamamos de aceitação de si mesmo. Auto-aceitação não é simples cumplicidade. Por outro lado, também a atitude narcisista de alguém se encher de vaidade, em razão de algumas qualidades que não ignora ter, está um pouco distante da meditada aceitação de si. Narciso, conta à mitologia, viu sua beleza espelhada na superfície de um lago; foi então, tomado de tal paixão por seu próprio rosto que mergulhou na água em busca de tanta formosura e morreu afogado. Aceitação consciente de si mesmo não é uma autocomplacência, que desculpa todos os nossos próprios defeitos, nem a vaidade, que pode levar a delírios capazes de esterilizar uma vida. 

Filosoficamente, a auto-aceitação exige, antes de qualquer coisa, alguns esclarecimentos sobre nós e a nossa condição. Aceitar-nos implica numa procura de muita lucidez, num exercício de meditação paciente sobre a nossa forma de ser no mundo. Não se trata necessariamente de meditação ao estilo dos orientais ou dos nossos monges, que se isolam e se distanciam do mundo no desejo de compreendê-lo melhor, olhá-lo com mais sabedoria. Trata-se, isto sim, de vivermos nas ruas, nos ônibus, nas escolas ou no trabalho, no ritmo normal das nossas atividades, mas procurando sentir nossa relação com tudo e todos de forma viva e profunda.

Esta reflexão vivida (ou este viver refletido) acabará pondo diante do nosso espírito as limitações e as possibilidades que ele tem. E aí será bem natural, olhando para as precariedades bem como para as qualidades que temos, percebemos quando os nossos defeitos resultam de limitações. Isto é, quando, o que temos de carente ou insatisfatório em nossa personalidade, é assim porque temos limitações definidas e não podemos ir além dessas fronteiras. Porque quando nossos defeitos resultam de comodismo ou apenas preguiça, somos responsáveis pelo trabalho de superá-los, procurando não usar as pressões sociais e outras dificuldades do meio como um tapume que esconda uma negligência pessoal. Quanto às nossas qualidades, estas serão confrontadas, pela reflexão crítica, com as fraquezas que os limites impõem, é nesta hora que sentiremos ser tola qualquer vaidade. 

Já foi citado por muitos pensadores que “a primeira de todas as sabedorias é conhecermos os nossos limites”. Aquele que adquire noção das próprias limitações encontra o caminho do equilíbrio. Descobre como foi indispensável à meditação feita em busca de uma mais clara consciência de si e do mundo, com a ajuda sempre indispensável dos outros que com ele convivem no cotidiano. A aceitação de si mesmo terá, entre outras, os seguintes componentes: a) Que a pessoa se assuma como ser de extremos, diríamos mesmo como ser de contradições. Afinal, já dizia o filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860), que no ser humano há um enorme gigante chamado “vontade”, que carrega em seu ombro um pequeno anãozinho chamado “razão”.

O anão vive dizendo coisas ao ouvido do gigante, sendo que entre eles há muitos desencontros e também muitos encontros. Por isto às vezes é bem difícil agir como pensamos ou, como se costuma dizer, difícil ser coerentes. Somos como somos. É nossa tarefa melhorarmos, mas não além dos nossos limites. b) Do ponto de vista natural, cada um aceita sua condição de ser entre os seres, sua situação de ser um dado da natureza entre milhões de outros. Mas, em seguida se conscientize do fato de sendo homem, estar na posição de um ser que pensa os demais, escapando a um nivelamento com toda a natureza, é a faculdade humana de transcendência. c) Ainda há componente de abrirmos nossa sensibilidade aos encantos que existem em nossa condição, há um tempo frágil e atuante. Aos encantos que há em não sermos divindades, mas só ser humano gozando a humilde graça de viver nossa natureza. 

Depois de paciente meditação, ficaremos tranquilos ante o fato de que nossas vidas sejam tecidas de crenças e dúvidas, de algumas certezas e inúmeras interrogações, lembrando das aulas de antropologia filosófica do Prof. Régis de Morais (1940), que recomendava: “Tenha as suas crenças e tenha as suas duvidas”. Este bem humorado conselho ajuda-nos a não cometermos a frivolidade de nos levarmos sempre demasiado a sério. A aceitação de si mesmo é um momento dialeticamente muito rico, pois, ao mesmo tempo em que aponta para a humildade das limitações humanas, aponta para o abismo que separa o homem do restante da natureza, isto é, sua possibilidade de refletir. 

Aquele que consegue trazer essa consciência para o dia a dia, levando a vida naturalmente e descomplicadamente, aberto à compreensão do seu semelhante, este se aceitou. Ele guarda consigo a certeza de que, como ser falível, a qualquer momento pode errar (isto será um direito seu), como também tem claro para si que pode procurar corrigir os seus equívocos (e isto será seu dever). É por este modo completamente humano de se situar na vida, que dizemos: este aceitou a si mesmo. 

Comumente se diz que nossa identidade, a descoberta de quem realmente somos, nos chega através dos outros que partilham conosco “o caminho”. E isto é muito verdadeiro. Todavia, é importante não confundir esta afirmação com outra, certamente equivocada, de que nosso semelhante é quem nos dá nossa identidade. Tudo se passa como alguém que se olha num espelho: sua imagem, uma vez refletida, lhe chega graças (através) do espelho; mas sua imagem não tem origem no espelho. Os que convivem conosco, reagindo a nossa presença no mundo, funcionam como espelhos privilegiados, espelhos dotados de afetividade que nos dão condições de descobrirmos quem somos. Mas em tudo isto é preciso haver uma combinação de humildade com senso crítico, para não corrermos o risco de aceitar ser o que não somos de fato. 


Portanto, nossa identidade é facilitada pelos outros, mas a aceitação de nós mesmos é o resultado de um trabalho paciente, através do qual nós mesmos devemos perceber-nos e nos dar uma espécie de autorização para viver. A consciência de si recria para cada um nós, esse belo espetáculo que é a "vida". Aceitar sem vontade é morrer para a vida e enterrar o entusiasmo e o desejo que nos move.

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