18 de setembro de 2021

O QUE É QUE EU AMO QUANDO AMO?

Os místicos e apaixonados concordam em que o amor não tem razões. Angelus Silésius (1624-1677), místico medieval, disse que ele é como a rosa: “A rosa não tem ‘porquês. Ela floresce porque floresce”. O poeta e cronista brasileiro Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), repetiu a mesma coisa no seu poema “as cem-razões do amor”. É possível que ele tenha se inspirado nestes versos mesmo sem nunca os ter lido, pois as coisas do amor circulam com o vento. “Eu te amo porque te amo, cem razões”. “Não precisas ser amante, e nem sempre saber sê-lo”.

Meu amor independe do que me fazes. Não cresce do que me dás. Se fossem assim ele flutuaria ao sabor dos teus gestos. Teria razões e explicações. Se um dia teus gestos de amante me faltassem, ele morreria como a flor arrancada da terra. “Amor é estado de graça e com amor não se paga”. Nada mais falso do que o ditado popular que afirma que “amor com amor se paga”. O amor não é regido pela lógica das trocas comerciais. Nada te devo. Nada me deves. Como a rosa floresce, eu te amo porque te amo. “Amor é dado de graça, é semeado no vento, na cachoeira, no eclipse. Amor foge a dicionários e a regulamentos vários. Amor não se troca. Porque amor é amor a nada, feliz e forte em si mesmo”.

Drummond tinha de estar apaixonado ao escrever estes versos. Só os apaixonados acreditam que o amor seja assim, tão sem razões. Mas, talvez por não estarmos apaixonados, suspeitamos que o coração tenha regulamentos e dicionários. E o matemático, físico e filósofo francês Blaise Pascal (1623-1662) nos apoiaria, pois foi ele quem disse que “o coração tem razões que a própria razão desconhece”. Não é que faltem razões ao coração, mas que suas razões estão escritas numa língua que desconhecemos. Destas razões escritas em língua estranha o próprio Drummond tinha conhecimento e se perguntava: “Como decifrar pictogramas de há dez mil anos se nem sei decifrar minha escrita interior? A verdade essencial é o desconhecido que me habita e a cada amanhecer me dá um soco.” O amor será isto: “um soco que o desconhecido me dá”?

Ao apaixonado a decifração desta língua está proibida, pois se ele a entender, o amor se irá. Como na história de Barba Azul, um personagem de um famoso conto infantil: “se a porta proibida for aberta, a felicidade estará perdida”. Foi assim que o paraíso se perdeu: quando o amor – frágil bolha de sabão, não contente com sua felicidade inconsciente, se deixou morder pelo desejo de saber. O amor não sabia que sua felicidade só pode existir na ignorância das suas razões. Foi o filósofo dinamarquês Soren Kierkergaard (1813-1855) que comentou o absurdo de se pedir dos amantes explicações para o seu amor. A esta pergunta eles só possuem uma resposta: o silêncio. Mas que se lhes peça simplesmente falar sobre o seu amor – sem explicar. E eles falarão por dias, sem parar. Mas, olho o amor com olhos de suspeita, curioso. Quero decifrar sua língua desconhecida. Procuro, ao contrário de Drummond, as cem razões do amor.

Vamos a Santo Agostinho (354-430), em busca de sua sabedoria. Releio as Confissões, texto de um teólogo que meditava sobre o amor sem estar apaixonado. Possivelmente aí se encontre a análise mais penetrante das razões do amor jamais escritas. E me defronto com a pergunta que nenhum apaixonado poderia jamais fazer: “Que é que eu amo quando amo o meu Deus?” Imaginem se um apaixonado fizesse essa pergunta à sua amada: “Que é que eu amo quando te amo?” Seria, talvez, o fim de uma história de amor. Pois esta pergunta revela um segredo que nenhum amante pode suportar: que ao amar a amada o amante está amando uma outra coisa que não é ela. Nas palavras do escritor e pintor alemão Hermann Karl Hesse (1877-1962), “o que amamos é sempre um símbolo”. Daí, conclui ele, a impossibilidade de fixar o seu amor em qualquer coisa sobre a terra.  

Variações sobre a impossível pergunta: Te amo, sim, mas não é bem a ti que eu amo. Amo uma outra coisa misteriosa, que não conheço, mas que me parece ver aflorar no teu rosto. Eu te amo porque no teu corpo um outro objeto se revela. Teu corpo é lagoa encantada onde reflexos nadam como peixes habituados a fugir. Como Narciso, fico diante dele. “No fundo de tua luz marinha nadam meus olhos, à procura.” (Cecília Meireles 1901-1964): “Por isto te amo, pelos peixes encantados”.

Mas, os peixes são escorregadios. Fogem. Escapam. Escondem-se. Zombam de mim. Deslizam entre meus dedos. Eu te abraço para abraçar o que me foge. Ao te possuir alegro-me na ilusão de os possuir. Tu és o lugar onde me encontro com esta outra coisa que, por pura graça, sem razões, desceu sobre ti, como o vento desceu sobre a Virgem Bendita. Mas, por ser graça, sem razões, da mesma forma como desceu poderá de novo partir. Se isto acontecer deixarei de te amar. E minha busca recomeçará de novo.

Portanto, esta é a dor que nenhum apaixonado suporta. A paixão se recusa a saber que o rosto da pessoa amada (presente) apenas sugere o obscuro objeto do desejo (ausente). A pessoa amada é metáfora de uma outra coisa. “O amor começa por uma metáfora”, diz o escritor tcheco Milan Kundera (1929): o amor começa no momento em que uma mulher se inscreve com uma palavra em nossa memória poética”. Temos agora a chave para compreender as razões do amor, segundo o psicanalista, filósofo e educador Rubem Alves (1933-2014): “o amor nasce, vive e morre pelo poder – delicado – da imagem poética que o amante pensou ver no rosto da amada”.

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