24 de novembro de 2015

VONTADE NÃO É DESEJO

Desejo é diferente de vontade. Desejo é coisa da alma e do corpo. Vontade é coisa do raciocínio e do ego. Para melhor compreende essa dualidade, vamos imaginar dirigindo num transito e de repente o guarda quer nos multar por excesso de velocidade, mesmo sabendo que estamos no limite permitido, o nosso desejo é de enfiar a mão na cara do guarda. Nosso desejo é provar que estamos com a razão. Mas, sabemos que isso de nada adiantará, pois o poder está com ele. Ora, sabendo que o poder está com ele, então, contemos o nosso desejo e usamos a nossa vontade para argumentar.

Na relação afetiva acontece a mesma coisa. Ao conhecer uma pessoa que nos atrai e provoque o nosso desejo de ter alguma intimidade com ela. Se negarmos que estamos a desejando, vamos reprimir e por via disso, vamos enfraquecer a nossa individualidade. Podemos não ter nenhuma intimidade com essa pessoa em respeito a nossa outra cara metade. Assim como não gostaríamos que fizessem conosco, não faríamos com quem amamos. Porém, a nossa vontade prevaleceu e não cedemos aos nossos desejos.

Isto implica que sem reflexão, agimos por impulso e não percebemos que este impulso – desejante ou reativo – é resultante do que sentimos; se não refletimos o que sentimos, certamente agimos de maneira equivocada pela perturbação emocional. A diferença entre o desejo e a vontade se encontra numa relação muito estreita, embora distinta. Para melhor compreender vamos recorrer ao poema de Adélia Prado que diz: “Eu não quero a faca e o queijo, eu quero a fome”. Além do princípio pedagógico fantástico que carrega a frase, ela põe em relevo a vontade e o desejo. Algo que nos inquieta. Isto é, a fome é o desejo, o instinto, comemos quando estamos com fome para satisfazer nosso organismo. O querer a fome é querer comer, com apetite para a satisfação do desejo.

Entretanto, a vontade está explícita nessa frase. A vontade é o querer com apetite. Porém, essa vontade se expressa fora do âmbito do desejo, que é impulsivo, enquanto que a vontade é um querer racional com finalidade de resolver o problema da fome. A vontade é potência, estímulo, cultivo. O ato é manifestação da realização do desejo. Se desejo é porque ainda não tenho. Só desejamos aquilo que não temos. O homem deseja a mulher e vice e versa, por carência e a ausência que reclama a sua outra metade. Quando ambos se encontram e se completam, sai de cena o desejo para dar lugar à excitação.

A paixão, pensada e vivenciada pela nossa juventude é desejo, falta, dor e ausência. Amor é essa vontade espontânea de amar, dar-se, cuidar e atender. Cada um com seu pensamento e sua vida, cada qual se avalia e diz se realmente ama o outro ou fica com ele por medo, carência, utilitarismo ou qualquer outro tipo de pretexto. Volto a citar Adélia Prado: “não quero a carne, não quero o gozo, quero é o tesão. Que seja pela vida, pela amada, pela fotografia, pelo cinema, pelos esportes ou seja lá que causa for”. Viver é pensar e pensar é viver, no nível mais profundo dessa vontade, que tanto falta em nós. Porém, tão comum e abundante é o desejo em nossa sociedade. Sendo assim, para que pensar? Logo digo: para saber-me mais perto da vontade de viver que do desejo de vida. Tendo em vista que a vida já temos, precisamos colocar nela a vontade de viver.

Portanto, desejo é tudo o que emerge do pensamento à ação sem que se possa controlar; é o impulso instintivo, é a avidez pelo prazer das sensações. Vontade é a ação regida pela razão, independentemente da corrente dos desejos, ou seja, é o uso da razão para deliberar escolhas. Muito diferente de desejo, vontade é o saber materializado em conduta; é tudo o que o pensamento produz para se sobrepor aos instintos, a fim de viver melhor. A fronteira entre a vida boa e a vida ruim está no descolamento entre a racionalidade e o impulso desejante, ou seja, entre a vontade e o desejo. A vontade percebe que, apesar do desejo, é possível viver na contramão dos instintos. Contudo, a isso chamamos liberdade, que é a soberania da competência deliberativa sobre as próprias inclinações. Sou livre quando, ao flagrar meus desejos, consigo agir racionalmente, contrariando o que sugerem meus impulsos. 

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