16 de março de 2015

O CANTO DO PÁSSARO SOLITÁRIO

Certa manhã estava caminhando por uma trilha entre árvores nativas e observei o canto solitário do pássaro João de barro, conhecido também como forneiro, pela característica do seu ninho ser em forma de forno. É a ave símbolo da Argentina, onde é chamado de “hornero” que quer dizer “Ave de lá Pátria”, desde 1928. Notei que seu cantar era triste e solitário. Por algum momento indaguei a sua solidão, talvez por conhecer um pouco dos hábitos desta ave. Acredita-se que o João de barro não aceita traição, contudo, pode acontecer que ele empareda dentro do ninho a fêmea que o tenha traído. Na verdade, tudo não passa de um mito, que pode ter surgido de dois fatos aleatórios.

O primeiro é de que alguns ninhos abandonados de João de barro são aproveitados por abelhas indígenas como a urucu-mirim, para fazerem sua colmeia. Elas fecham a entrada do ninho com cera, dando a impressão de ter sido fechado pela ave, que logo é percebido o engano. E a outra versão, que parece ser a verdadeira, foi contada por um amigo biólogo e pesquisador, que uma desta ave foi acidentalmente pega em uma ratoeira que lhe quebrou os dois pés. Após conseguir escapar, voou para o seu ninho onde entrou e não foi mais vista, ali morrendo certamente. Sendo que o outro membro do casal permaneceu por ali mais dois dias, chamando insistentemente pela parceira. Passado os dois dias ele também desapareceu e retornou dias depois com uma nova parceira e começaram a carregar barro para o ninho, fechando a sua entrada, em seguida construíram outro ninho sobre o primeiro e ali procriaram. Este fato demonstra uma qualidade do João de barro, por ter tido o cuidado de sepultar sua parceira.

É possível que esta história tenha muito de fantasia acabando muitas vezes com seu real sentido. Por outro lado, o ponto de partida para a nossa reflexão seria as relações humanas afetivas e amorosas, cuja metáfora é o casal de João de barro. Não pretendo contar mais uma estória de amor entre outras tantas. Mas contar a estória do nascimento e da vida do amor. Como diz os poetas e trovadores, o amor vive neste sutil fio de conversação, balançando-se entre a boca e o ouvido. O segredo do amor é a androgenia, como relata “O Banquete” de Platão, “somos todos ao mesmo tempo, metades homens e mulheres, metades masculinos e femininos”. É preciso muita percepção, saber ouvir e acolher. Deixar que o outro entre dentro da gente. Ouvir em silêncio. Sem expulsa-lo por meio de argumentos e contra razões. Nada mais fatal contra o amor que a resposta rápida. Há pessoas muito velhas cujos ouvidos ainda são virgens, nunca foram penetrados. Assim como também, é preciso saber falar. Há certas falas que é um verdadeiro estupro. Somente sabem falar os que sabem fazer silêncio e ouvir.

Segundo a lendária rainha persa e narradora dos contos de “As Mil e Uma Noites”. Sherazade sabia que todo amor construído sobre as delícias do corpo tem vida breve e a chama se apaga tão logo o corpo se tenha esvaziado do seu fogo. Como conta a lenda persa, o seu triste destino é ser decapitado pela madrugada, assim falou o poeta: “que não seja eterno posto o que é chama”. Nos seus contos cada estória contém outra, dentro de si, infinitamente. Não há um orgasmo que ponha fim ao desejo. E cada estória lhe parece bela, como nenhuma outra. Porque uma pessoa é bela, não pela beleza dela, mas pela beleza nossa que se reflete nela. É no olhar que te vejo. E no olhar lhe transformo.

Para o filósofo e crítico cultural alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), dizia ele: “ao pensar sobre a possibilidade do casamento, cada um deveria se fazer a seguinte pergunta: você crê que seria capaz de conversar com prazer com esta pessoa até o fim dos seus dias?” Porque tudo o mais no casamento é transitório, mas as relações que desafiam o tempo são aquelas construídas sobre a arte de conversar. A melodia e sons das palavras como diz o sábio tântrico, é a sexualidade sob a forma da eternidade. É o amor que ressuscita sempre, depois de morrer. Há os carinhos que se fazem com o corpo e há os carinhos que se fazem com as palavras. Ao contrario do que pensam os amantes inexperientes, fazer carinho com as palavras não é ficar repetindo o tempo todo: “eu te amo, eu te amo”. Para o filósofo, sociólogo e escritor francês Roland Barthes (1915-1980), advertia dizendo que passada a primeira confissão: “eu te amo”, não quer dizer mais nada. É na conversa que o nosso verdadeiro corpo se mostra, não em sua nudez anatômica, mas em sua nudez poética. Aqui me recordo de uma frase da escritora Adélia Prado (1935), diz ela: “erótica é a alma”.

Portanto, concluo esta reflexão citando o teólogo, filósofo e educador Rubem Alves (1933-2014), que dizia: “o sonho do outro é um brinquedo que deve ser preservado, pois se sabe que se é sonho, é coisa delicada, do coração”. O bom ouvinte é aquele que ao falar, abre espaço para que as bolhas de sabão do outro voem livres. Ao comparar o casamento com o jogo de tênis e o frescobol, contado no livro “Cantos do Pássaro Encantado”, Rubem Alves nos mostra dois jogos, na verdade, são dois jogadores de tênis que usam duas raquetes e uma bolinha de tênis, porém, ao contrario do tênis, no frescobol nada muda, só não tem ganhador e nem derrotado, a bola vai e vem, e assim cresce o amor. Ninguém ganha para que os dois ganhem. Contudo, deseja-se então que o outro viva sempre, eternamente, para que o jogo nunca tenha fim. Todavia, o ouvido é feminino, vazio que espera e acolhe que se permite ser penetrado. A fala é masculina, algo que cresce e penetra nos vazios da alma. Foi assim na antiga tradição mitológica que o “deus humano” foi concebido pelo sopro poético do “verbo divino”, penetrando os ouvidos encantados e acolhedores de uma “virgem”. Sobretudo, os que se dedicam à difícil arte de adivinhar os mundos adormecidos que habitam os vazios de cada um de nós. 

Um comentário:

  1. Anônimo20:21

    Não pretendo contar mais uma estória de amor entre outras tantas. Mas contar a estória do nascimento e da vida do amor. Como diz os poetas e trovadores, o amor vive neste sutil fio de conversação, balançando-se entre a boca e o ouvido...hummmm lindo,verdade...mas o toque a pele, a presença o abraço isto faz se sentir viva, querida e amada e nos dar forças sem se saber..bjus em seu coração....

    ResponderExcluir

POEMA INSTANTE DO POETA JORGE LUÍS BORGES

Se eu pudesse viver novamente a minha vida, na próxima trataria de cometer mais erros. Não tentaria ser tão perfeito, relaxaria mais. Seria ...