Os
místicos e apaixonados concordam em que o amor não tem razões. Angelus Silésius
(1624-1677), místico medieval, disse que ele é como a rosa: “A rosa não
tem ‘porquês. Ela floresce porque floresce”. O poeta e cronista brasileiro
Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), repetiu a mesma coisa no seu poema
“as cem-razões do amor”. É possível que ele tenha se inspirado nestes
versos mesmo sem nunca os ter lido, pois as coisas do amor circulam com o
vento. “Eu te amo porque te amo, cem razões”. “Não precisas
ser amante, e nem sempre saber sê-lo”.
Meu
amor independe do que me fazes. Não cresce do que me dás. Se fossem assim ele
flutuaria ao sabor dos teus gestos. Teria razões e explicações. Se um dia teus
gestos de amante me faltassem, ele morreria como a flor arrancada da
terra. “Amor é estado de graça e com amor não se paga”. Nada
mais falso do que o ditado popular que afirma que “amor com amor se paga”.
O amor não é regido pela lógica das trocas comerciais. Nada te devo. Nada me
deves. Como a rosa floresce, eu te amo porque te amo. “Amor é dado de
graça, é semeado no vento, na cachoeira, no eclipse. Amor foge a dicionários e
a regulamentos vários. Amor não se troca. Porque amor é amor a nada, feliz e
forte em si mesmo”.
Drummond
tinha de estar apaixonado ao escrever estes versos. Só os apaixonados acreditam
que o amor seja assim, tão sem razões. Mas, talvez por não estarmos
apaixonados, suspeitamos que o coração tenha regulamentos e dicionários. E o
matemático, físico e filósofo francês Blaise Pascal (1623-1662) nos apoiaria,
pois foi ele quem disse que “o coração tem razões que a própria razão
desconhece”. Não é que faltem razões ao coração, mas que suas razões estão
escritas numa língua que desconhecemos. Destas razões escritas em língua
estranha o próprio Drummond tinha conhecimento e se perguntava: “Como
decifrar pictogramas de há dez mil anos se nem sei decifrar minha escrita
interior? A verdade essencial é o desconhecido que me habita e a cada amanhecer
me dá um soco.” O amor será isto: “um soco que o desconhecido me dá”?
Ao
apaixonado a decifração desta língua está proibida, pois se ele a entender, o
amor se irá. Como na história de Barba Azul, um personagem de um famoso conto
infantil: “se a porta proibida for aberta, a felicidade estará perdida”.
Foi assim que o paraíso se perdeu: quando o amor – frágil bolha de sabão, não
contente com sua felicidade inconsciente, se deixou morder pelo desejo de
saber. O amor não sabia que sua felicidade só pode existir na ignorância das
suas razões. Foi o filósofo dinamarquês Soren Kierkergaard (1813-1855) que
comentou o absurdo de se pedir dos amantes explicações para o seu amor. A esta
pergunta eles só possuem uma resposta: o silêncio. Mas que se lhes peça
simplesmente falar sobre o seu amor – sem explicar. E eles falarão por dias,
sem parar. Mas, olho o amor com olhos de suspeita, curioso. Quero decifrar sua
língua desconhecida. Procuro, ao contrário de Drummond, as cem razões do amor.
Vamos
a Santo Agostinho (354-430), em busca de sua sabedoria. Releio as Confissões,
texto de um teólogo que meditava sobre o amor sem estar apaixonado.
Possivelmente aí se encontre a análise mais penetrante das razões do amor
jamais escritas. E me defronto com a pergunta que nenhum apaixonado poderia
jamais fazer: “Que é que eu amo quando amo o meu Deus?” Imaginem
se um apaixonado fizesse essa pergunta à sua amada: “Que é que eu amo
quando te amo?” Seria, talvez, o fim de uma história de amor. Pois
esta pergunta revela um segredo que nenhum amante pode suportar: que ao amar a
amada o amante está amando uma outra coisa que não é ela. Nas palavras do
escritor e pintor alemão Hermann Karl Hesse (1877-1962), “o que amamos
é sempre um símbolo”. Daí, conclui ele, a impossibilidade de fixar o seu
amor em qualquer coisa sobre a terra.
Variações
sobre a impossível pergunta: Te amo, sim, mas não é bem a ti que eu amo. Amo
uma outra coisa misteriosa, que não conheço, mas que me parece ver aflorar no
teu rosto. Eu te amo porque no teu corpo um outro objeto se revela. Teu corpo é
lagoa encantada onde reflexos nadam como peixes habituados a fugir. Como
Narciso, fico diante dele. “No fundo de tua luz marinha nadam meus
olhos, à procura.” (Cecília Meireles 1901-1964): “Por isto te amo,
pelos peixes encantados”.
Mas,
os peixes são escorregadios. Fogem. Escapam. Escondem-se. Zombam de mim.
Deslizam entre meus dedos. Eu te abraço para abraçar o que me foge. Ao te
possuir alegro-me na ilusão de os possuir. Tu és o lugar onde me encontro com
esta outra coisa que, por pura graça, sem razões, desceu sobre ti, como o vento
desceu sobre a Virgem Bendita. Mas, por ser graça, sem razões, da mesma forma
como desceu poderá de novo partir. Se isto acontecer deixarei de te amar. E
minha busca recomeçará de novo.
Portanto,
esta é a dor que nenhum apaixonado suporta. A paixão se recusa a saber que o
rosto da pessoa amada (presente) apenas sugere o obscuro objeto do desejo
(ausente). A pessoa amada é metáfora de uma outra coisa. “O amor começa
por uma metáfora”, diz o escritor tcheco Milan Kundera (1929): “o
amor começa no momento em que uma mulher se inscreve com uma palavra em nossa
memória poética”. Temos agora a chave para compreender as razões do
amor, segundo o psicanalista, filósofo e educador Rubem Alves (1933-2014): “o
amor nasce, vive e morre pelo poder – delicado – da imagem poética que o amante
pensou ver no rosto da amada”.
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