Embora
saibamos que tudo que vive é o nosso próximo, esta máxima de amar ao próximo
como a ti mesmo é a coisa mais difícil de acontecer no mundo moderno. Pois
andamos tão esquecidos e ultrajados de nós mesmos que nem damos conta da
existência de outros em nossas vidas. Somos completamente alienados pelas novas
plataformas digitais, compartilhando, escrevendo e falando feito papagaio. E ninguém
enxerga ninguém, mas estão todos conectados para receber algumas curtidas e se
realizar. Fala-se tanto em superar os pragmatismos da política parasitária, da
educação falida, da saúde carente, mas, e o seu papel de cidadão, tem cumprido?
Têm aberto os olhos para o que de fato importa? Tem analisado seus
comportamentos e condutas diárias? Será que pode mudar alguma coisa na vida de
alguém? Será que consegue tornar-se mais humano para os que estão ao seu lado?
São muitas questões para pensar. São muitas pessoas que depreciam o valor do
pensamento, na realidade, estão perdendo o contato consigo e com o viver
plenamente. Estão perdendo a capacidade para experiências emocionais profundas
e verdadeiras. Ao invés de ficar alfinetando aqueles pensam.
Com
efeito, é possível amar o próximo? É uma das preocupações máxima e fundamentais
da vida civilizada. É também o que mais contraria o tipo de razão que a
civilização promove: a razão do interesse próprio e da busca da felicidade. O
preceito fundador da civilização só pode ser aceito como algo que faz sentido,
que seja praticado se nos rendermos a uma teologia cristã de amor ao próximo. É
suficiente perguntar por que devo fazer isso? Que benefício me trará? Para
sentir o absurdo da exigência de amar o próximo. Se amar alguém, essa pessoa
deve ter merecido de alguma forma. Eles o merecem se são tão parecidos comigo
de tantas maneiras importantes que neles posso amar a mim mesmo. E se são tão
mais perfeito do que eu, logo posso amar neles o ideal daquilo que sou quando
amo. Quero amar mesmo sem ser amado. Aprendi que se quiser ser amado, ame
primeiro.
Entretanto,
se ele é um estranho para mim e se não pode me atrair por qualquer valor
próprio, ou significação que possa ter adquirido para a minha vida emocional,
será difícil amá-lo. Amar o próximo como a ti mesmo coloca o amor-próprio como
um dado indiscutível, como algo que sempre esteve ali. O amor-próprio é uma
questão de sobrevivência, e a sobrevivência não precisa de mandamentos, já que
outras criaturas vivem muito bem sem eles. Amar o próximo como se ama a ti
mesmo torna a sobrevivência humana diferente daquela de qualquer outra criatura
viva. O preceito do amor ao próximo desafia e interpela os instintos
estabelecidos pela natureza, mas também o significado da sobrevivência por ela
instituído, assim como o do amor-próprio que o protege. O que significa
amor-próprio? O que eu amo em mim mesmo? O que eu amo quando amo a mim mesmo?
Nós, humanos, compartilhamos os instintos de sobrevivência com nossos primos
animais mais próximos. Quando se trata de amor-próprio, nossos caminhos se
separam e seguimos por conta própria.
É
verdade que o amor-próprio estimula a gente a se agarrar à vida, a tentar a
todo custo permanecer vivo, a resistir e enfrentar o que quer que ameace pôr
fim à nossa vida de modo prematuro ou abrupto, ou, melhor ainda, a melhorar
nosso vigor e aptidão física para tornar efetiva essa resistência. Pois o que
amamos em nosso amor-próprio são os eus apropriados para serem amados. O que
amamos é o estado, ou a esperança, de sermos amados. De sermos objetos dignos
do amor, sermos reconhecidos como tais e recebermos a prova desse reconhecimento.
Em suma para termos amor-próprio, precisamos ser amados. A recusa do amor, a
negação do status de objeto digno do amor, alimenta a autoaversão. O
amor-próprio é construído a partir do amor que nos é oferecido por outros. Se
na sua construção forem usados substitutos, eles devem parecer cópias, embora
fraudulentas, desse amor. Outros devem nos amar primeiro para que comecemos a
amar a nós mesmos.
De
modo que o amor-próprio é resultado de sermos amados. Quando a pessoa percebe
que sua voz é ouvida, que sua opinião é importante ou que sua presença será
sentida, ela entende que é única, especial e digna de amor. Só o outro pode
dizer que somos dignos de amor, o que fazemos é reconhecer a existência do amor-próprio,
pelo simples fato do outro existir em nossas vidas. Num processo de
identificação com aquele que nos ama, também entendemos que nele existe a
necessidade de ser amado. Compreendemos a sua singularidade. Amamos quando
nosso ego se identifica com o outro e, desta forma, amamos a nós, merecedores
de amor, e amamos o outro identificado. Amar ao próximo como a ti mesmo a
máxima que funda a moralidade, porque só o instinto de preservação não é
suficiente para a sobrevivência das relações humanas. Em uma sociedade de pura
incerteza em relação ao outro, o amor nos é negado, assim como é negado à
dignidade de ser amado. Não há amor-próprio e não há injunções sociais que
prescrevem o amor ao próximo, fazemos dele algo fundamental na vida em
sociedade. Amar o próximo não é natural, na verdade é algo contra nossos
instintos mais básicos: por isso é o ato fundador da moralidade. Contudo, se
para amar ao próximo precisamos cada vez mais de normas pré-estabelecidas pelos
códigos penais, então o caminho da sociedade é para autodestruição.
Portanto,
um dos primeiros mandamentos de Jesus Cristo é amar o teu próximo como a ti
mesmo. As pessoas precisam sentir que são amadas, ouvidas e amparadas. Precisam
saber que fazem falta, que são dignas de amor. Isto é algo que só o outro pode
nos classificar. Com tantas incertezas, nas quais o amor nos é negado, como
teremos amor-próprio? Os amores e as relações humanas de hoje são todos
instáveis, e assim não temos certeza do que esperar. Há uma lógica de
segregação espacial e social, decorrente da sensibilidade alérgica e febril aos
estranhos e ao desconhecido e da incapacidade de aceitar e cuidar do humano, em
função da ausência de compromisso com o próximo. O medo instaura-se. Amar o
outro como a ti mesmo significa comprometimento, vinculo, querer para o outro
aquilo que se tem. Mas boa parte dos indivíduos encarcerados em seus
condomínios, preocupados em salvaguardar uma moral decadente, apontando para o
outro a falha que é sua. Contudo, existe uma necessidade urgente de se buscar
uma humanidade comum para que seja novamente possível unir projetos individuais
e ações coletivas, para que se possa ter a consciência da angústia do eterno
recomeçar. Enfim, relacionar-se é caminhar na neblina sem a certeza de nada,
talvez seja uma descrição poética dessa relação de amor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário