Para compreender com maior
profundidade a condição humana, ao ler o livro “Mito e Sexualidade”, do
escritor e jornalista americano Jamake Highwater (1942-2001), analisando a
interpretação fenomenológica e hermenêutica do autor, percebe-se que ele nos
concede importantes elementos que possibilitam a construção de novas
significações para a sexualidade humana. Esse trabalho de Highwater, na verdade
é fruto das contribuições das ciências humanas a partir do século XIX e mais
especificamente, das contribuições advindas das leituras marxistas, que naquele
momento tiveram como protagonista o filósofo, mitólogo e pesquisador romeno
Mircea Eliade (1907-1986), no que se refere à mitologia e religião. Tendo em
vista, que o marxismo foi decisivo para a superação da matriz positivista a que
estava subjugada a compreensão dos mitos. Até então os mitos eram tidos como uma
pré-consciência para os ocidentais. Como uma irracionalidade, foi o marxismo que
nos permitiu conceber os mitos, não como uma consciência pré-racional, mas,
sobretudo, como uma outra racionalidade.
Entretanto, a inversão
epístemológica trazida pela filosofia marxista, parte do pressuposto de que não
é a consciência dos homens que determina a sua existência, mas, as condições
materiais, ou seja, a existência dos homens que determina a sua consciência.
Deste modo, a partir desse pressuposto, os mitos puderam ser concebidos como outra forma de racionalidade, isto na medida em que expressam
simbolicamente, em outra linguagem as relações sociais, políticas e econômicas
de uma determinada cultura. Bem entendido, os mitos são reflexos da condição
histórica-material de cada sociedade.
O autor abre o primeiro
capítulo “O sexo como destino e o
destino como sexo” expondo sua preocupação com a ideia que nós ocidentais
fazemos da sexualidade. Ele demonstra historicamente que na verdade, a
compreensão que temos sobre a nossa sexualidade, basicamente a entendemos como
pulsão inata, universal, perigosa e imutável, fixou raízes no século XVII como a
invenção do conceito de “homem natural”.
E que com a superação do paradigma mecanicista que lhe deu origem, a ideia de
homem natural resistiu ao tempo, passando por diversas culturas, culminando com
a concepção freudiana sobre a sexualidade, por isso, hoje, extremamente difusa
no pensamento contemporâneo.
Dentro desta concepção
acredita-se, entre outras coisas, que há uma nítida distinção comportamental e
existencial entre homens e mulheres, selada desde o nascimento pelos genitais.
Sendo que, ao nascer somos reconhecidos como homens e mulheres pelos genitais,
nossa primeira identidade. Aos genitais também estão relacionadas às ideias do
sexo como força natural obsessiva que domina a maioria dos atos e decisões
humanas.
O autor visa superar essa
ideia ocidental da sexualidade, negando a ideia defendida por Freud de que “anatomia é destino” (onde a estrutura
anatômica do nosso corpo, nossa diferenciação sexual determinam o destino de
nossa experiência). O autor propõe que a sexualidade seja compreendida como um
produto de forças sociais e históricas, como uma unidade imaginária. Nestes
termos, como uma invenção do espírito humano. Na mesma linha de raciocínio, que
Highwater compartilha com Michel Foucault, seu principal interlocutor, a ideia
de que a sexualidade é uma “elaboração
histórica” e que para compreendê-la é necessário explicar o contexto que
lhe deu origem.
Pois, segundo Highwater, o
mito está na base e da a forma as estruturas e aos valores da sociedade. A
outra questão metodológica a ser considerada nesta tese, e subtraída pelo autor
das lições do relativismo, é o uso do choque de contraste entre distintas
culturas, para o questionamento da relação entre mito e sexualidade na sociedade
ocidental, tendo em vista que nada nos estimula mais a repensar as coisas que
julgávamos adquiridas a nosso respeito, do que o contraste entre a nossa visão
do mundo e a de uma cultura inteiramente diversa. A lição que o relativismo
cultural nos ensina é que a mitologia é o simbolismo sexual que nela assenta e
varia enormemente de época para época e de lugar para lugar.
No segundo capítulo, “A base mítica dos valores sexuais”, Highwater
dedica-se ao aprofundamento das questões metodológicas que embasam seu texto,
explicando minuciosamente as principais categorias que dão corpo a sua tese,
tais como: “a definição de sexualidade, de mitologia, de ritual, a definição do
corpo como metáfora social e mais uma vez, a discussão sobre a importância do
método e do contraste entre culturas diversas na abordagem da sexualidade”.
Para fundamentar sua tese, Highwater usa com abundância exemplificações de
determinados fenômenos como a castidade, a bissexualidade, a masturbação, em
distintos momentos históricos e em culturas variadas. Tal fato, a despeito de
construir uma leitura muito rica e prazerosa, torna ao mesmo tempo muito
dificultosa sua sistematização, exigindo do leitor bastante cuidado para que
não se perca nas viagens explicativas, em detrimento da real contribuição
teórica contida no texto.
Segundo o autor, a sexualidade,
como já discutimos anteriormente, deve ser compreendida como um fenômeno
culturalmente determinado, partindo das contribuições da história e dos estudos
do corpo humano, Jamake Highwater constrói a tese de que o corpo humano deve
ser encarado como uma metáfora da sociedade. Para ele, há uma forte correlação
entre o modo como as pessoas vêem seu corpo e o modo como vêem a sociedade a
que pertencem.
O eixo estrutural desta tese
consiste na relação entre mito, ritual e sexualidade; sendo assim, o próximo
passo será o entendimento do que seja a mitologia para Highwater. Entretanto,
para explicar o que entende por mitologia, o autor dialoga com o especialista
Devid Maclagan, com quem compartilha a ideia de que o mito é: “quer na sua
estrutura profunda, quer no seu conteúdo superficial, o mito tem que ver com
uma relação composta entre corpo-espírito e a palavra-mundo”. É metafórico não
no sentido do emprego das chamadas figuras de estilos, artifícios de mera
retórica, mas no sentido etimológico da palavra; o de transpor as fronteiras de
conveniência que nós estabelecemos entre os sexos, as estações, as espécies e
as estrelas. Esse vazamento metafórico de informações não se efetua de modo
consciente, tampouco é peculiar ao mito: penetra em flagrante tudo o que
fazemos, todas as percepções que sentimos mesmo no ramo mais estritamente
especializado da ciência.
E para não deixar dúvidas ao
leitor, Highwater equipara a função e o significado da mitologia com o
significado do conceito de novos paradigmas. Entretanto, os rituais podem, em
suma, ser entendidos como elementos grupais de legitimação dos costumes, ou
seja, eles sancionam a estrutura das relações sociais, dando-lhes expressões
visíveis e deste modo, nos permite conhecer nossa própria sociedade. Sendo
assim, nos importa agora analisar junto a Highwater, o processo pelo qual os
ritos do sexo comportam dentro de si os valores míticos da sociedade. Fica
evidente que no decorrer do texto, que a nossa visão da realidade é povoada de
mitos e que estes mudam no tempo e no espaço, assim como mudam também os ritos
do sexo e, por conseguinte, a visão sobre nossa corporeidade, visto que, o
corpo é constantemente transformado pelo fluxo da mentalidade mítica.
Portanto, a tese de Jamake
Highwater fundamentada na fenomenologia, mesmo assim, seja passível, com certa
facilidade, de uma interpretação materialista-histórica de seu conteúdo. Para
melhor aprofundamento e fazer esta leitura materialista da sexualidade, é
interessante ler o livro: “Desvendando a
Sexualidade”, do filósofo e educador Cesar Nunes, pois, ao tratar
da história da sexualidade humana ele estabelece uma divisão textual que segue
basicamente a mesma lógica temporal de Jamake Highwater, porém, consubstanciada
nos trilhos da economia e não da mitologia, com fator determinante na concepção
da sexualidade.
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