Um dos poemas de amor mais
famoso de todos os tempos é também um dos livros mais enigmáticos da Bíblia. O
Cântico dos Cânticos, que compõe o livro do Antigo Testamento, começa
atribuindo sua autoria ao rei Salomão (971-931 a.C.), talvez por entender do
tema amor, pois segundo a história ele tinha um harém de 700 esposas e 300
concubinas. O livro começa assim: “Beija-me
com teus beijos! Tuas carícias são melhores que o vinho!”. Com estes versos
inaugura o Cântico dos Cânticos, um longo diálogo entre um jovem casal
apaixonado. Tanto entre judeus quanto entre cristãos não faltaram polêmicas
sobre a inclusão ou não do poema nas Escrituras Sagradas, assim como não
faltaram traduções e interpretações que buscavam minimizar, ou até eliminar,
seu erotismo elegante, mas, desinibido. No entanto, que ninguém duvide que
quando ouvimos hoje as expressões como: “lábios de mel” ou “olhos de
jabuticaba”, estamos escutando ecos de uma tradição poética de mais de três mil
anos, inaugurada, ao que tudo indica, pelos escribas egípcios e, portanto, tão
antiga quanto à própria civilização.
Durante milhares de anos a
palavra “amor” sofreu uma metamorfose
tremenda com a entrada em cena do Novo Testamento. Agora “Deus é amor”, proclamada por São João Evangelista (10-103 d.C.) em
sua Primeira Epístola, talvez a manifestação mais clara de que o termo antes
usado para se referir à atração entre homem e mulher muda de sentido e é
adotado como base de toda uma nova religião. Essa revolução só pode realmente
ser compreendida quando descobrimos que nada menos que três palavras diferentes
do original grego do Novo Testamento foram traduzidas como “amor”. O amor ágape, ou seja, um amor
desinteressado, de doação sem espera de recompensa: “caridade”. Essa terminologia foi utilizada pelo Evangelista São
João e também pelo São Paulo Apostolo (05-67 d.C.), no célebre capítulo 13 de
Coríntios, transformado em balada pop por Renato Russo (1960-1996) da banda
Legião Urbana na canção “Monte Castelo”:
“ainda que eu falasse a língua dos homens
e dos anjos, e tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e
toda a ciência, e ainda tivesse toda a fé, se não tivesse amor, eu nada seria”.
No entanto, da para entender
finalmente porque em várias edições do Novo Testamento esse trecho aparece com
a palavra “caridade” no lugar de “amor”. A influência grega nessa
espiritualização do conceito de amor não foi pequena. A prova principal está na
expressão “amor platônico”, que
entrou para o vocabulário popular do mundo todo com seu sentido distorcido.
Vale à pena voltar à fonte, O Banquete, escrito por Platão (427-347 a.C.),
simplesmente porque é um dos textos chaves da cultura clássica ocidental e um
dos mais saborosos tratados filosóficos da Grécia Antiga. A narrativa O
Banquete lembra o Cântico dos Cânticos, onde a obra toda é montada em diálogos,
pode ser lida como uma peça de teatro. Entre os convidados, Platão coloca duas
das figuras mais célebres da Grécia Antiga: seu mestre Sócrates e o dramaturgo
Aristófanes, o rei da comédia helênica. O tema da noitada é justamente o amor,
ou melhor, Eros, o desejo sexual, que a mitologia grega representava como uma
divindade astuta, o tempo todo flechando o coração da moçada. É bom lembrar,
que o coração flechado permanece até hoje como símbolo dos apaixonados.
Entretanto, a ideia das “almas gêmeas” e da “cara metade” aparece talvez pela primeira vez na cultura ocidental
no texto, quando Aristófanes recorre justamente à mitologia para explicar o
impulso amoroso. Segundo ele, o ser humano era inicialmente um andrógino de
duas faces, quatro pernas e quatro braços. Temendo que seu poder ameaçasse os
deuses, Zeus dividira essa estranha criatura em duas. Desde então carregamos a
sensação de estarmos sempre incompletos, desejando a união com a minha outra
metade. Sócrates (469-399 a.C.) que descartava os mitos como mera superstição,
obviamente rejeita a versão de Aristófanes (447-386 a.C.) e a discussão
progride na direção do conceito original de amor platônico. O Banquete é uma
obra que se resume assim: “Eros é uma
divindade, uma força divina que intervém na vida humana, mas que precisa ser
orientada pela inteligência”. O desejo se manifesta primeiro como amor por
outro corpo bonito, mas evolui para o amor por belas atividades e ocupações. Na
verdade, tudo aquilo que é digno de ser amado. Platão coloca essa questão como
responsabilidade do ser humano para dar ascensão intelectual e espiritual à
força de Eros.
Temos hoje em dia uma ideia
errônea do amor platônico, como sendo da afeição sem contato físico. Ao fazer
uma leitura mais apurada notaremos que o conceito original não é bem esse. Se
perguntasse a Platão, na certa diria que o amor deve ser a afeição elevada a um
plano ideal que transcende o contato físico, mas que não o exclui. A distinção
entre corpo e alma que herdamos não existia para os gregos. Eles acreditavam
numa continuidade, não numa ruptura. Para eles a ascensão do amor era uma
questão de inteligência e, portanto, essencialmente masculina. Os gregos tinham
um grande preconceito contra a mulher. A mulher não opinava sobre o amor e nem
participava das reuniões. Por isso mesmo que muitos leem em O Banquete de
Platão como uma apologia do homossexualismo, não só comum entre os gregos da
época como considerado parte da relação mestre-discípulo entre os rapazes e os
mais velhos. Os anfitriões do jantar narrado pelo filósofo formam um casal
masculino e a festa chega a ser interrompida, a certa altura, pelo jovem
Alcebíades (450-404 a.C.), que entra bêbado, declarando sua paixão por
Sócrates. No fim, porém, é a parceria intelectual que é considerada a união
perfeita, entre os homens. Neste ponto, o contraste com o Cântico dos Cânticos
é total e absoluto, já que um dos traços mais marcantes do poema bíblico é
apresentar homens e mulheres manifestando seu desejo sexual em pé de igualdade.
Portanto, o fervor amoroso
dos trovadores medievais alçou o amor a um patamar de emoção cultuada, prenunciando
a adoração casta de poetas renascentistas. O mesmo culto antecipou o romantismo
do século XIX, que venerava a agonia dos apaixonados acima de qualquer prazer.
Alias, o significado original da paixão é a conexão inevitável entre o amor e o
sofrimento. Passio é outra palavra latina, que significa sofrer por amor. Vem
do latim eclesiástico: a expressão sexta feira da Paixão endossa que Jesus
morreu por amor à humanidade. Sendo assim, o amor passa a ser dirigido a uma
ideia, a uma causa, a uma atividade, em vez de a uma pessoa. Toda a civilização
foi construída, usando como matéria-prima a repressão dos instintos sexuais. Se
o pai da psicanálise Sigmund Freud (1856-1939), tão criticado por reduzir toda
nossa existência ao sexo, tiver mesmo razão, fica mais fácil entender por que é
impossível fugir do amor. Ele está em toda parte, seja lá o que for esse
sentimento que, no final das contas, tem resistido, séculos após séculos, a
todas as tentativas de explicação. Agora faz sentido a existência do amor na
vida dos humanos. Possuir é nada, desejar é tudo.
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