Ao longo
dos últimos anos a nossa vida social tornou-se penosa demais e de difícil
convivência e trocas de intimidades com as pessoas próximas. Sobretudo, pela
individualidade emergente que vem a cada dia crescendo e distanciando as
pessoas uma das outras. Viver em sociedade já nos deu muito prazer, mas
atualmente, tornou-se um peso. Não compartilhamos o mesmo ideal do bem comum.
Isto se agrava quando a crise torna-se norma em vez de exceção. O
respeito pelo outro ficou distante. Como salvar a nossa vida social? Como
preservar a nossa vida pessoal, como um ponto rico de apoio à intimidade?
Vivemos a
época do simulacro, do amor líquido, das amizades efêmera, do transitório, do
fast-food, das múltiplas janelas abertas, das mensagens rápidas, fragmentadas e
instantâneas, da aceleração geral de todas as esferas da vida. Vivemos, ao
mesmo tempo, em uma época em que a imagem tornou-se poderosa demais.
A
reflexão filosófica não se contenta com o simulacro, a impressão dos sentidos,
a liquidez das relações, o instante transitório. A filosofia pelo seu modo de
ser e atuar convoca a uma atitude contemplativa, especulativa e questionadora.
Libertando o pensamento para uma relação livre, crítica e refletida para com o
próprio tempo. Penso que deste modo a filosofia poderá ensinar a virtude do
diálogo, a força da verdade e a importância dos conceitos. Uma forma talvez de
preservar e cuidar da intimidade.
Mas, o
que fazer diante da crise? Que tipo de cuidados devemos ter para que nossa vida
seja melhor? Para compreender o momento critico em que nossa humanidade
atravessa precisamos antes, de uma maneira meio simplificada, dividir a nossa
vida numa dimensão publica social, privada, pessoal e até mesmo numa dimensão
intima.
A vida
publica social, para algumas sociedades foi fundamental. Para a democracia
ateniense, apesar de ter durado pouco tempo, ela continua sendo uma espécie de
referencia para quem estuda filosofia, democracia e fenômenos sociais. Na
democracia ateniense, a ideia de que o homem só se realiza em sociedade era
vital para eles. O homem que não vivesse em sociedade era alguém considerado limitado.
Era alguém que não participava das decisões comum a todos. Era um cidadão
privado que vivia em oposição ao Estado. Considerado pelos gregos como um idiótes ou idhiótis,
traduzindo etimologicamente para o português quer dizer: idiota. Pessoa
fechada em si mesma, limitada, que não participa da vida em sociedade. O poeta e dramaturgo alemão Bertolt
Brecht, argumenta num dos seus textos que, “o pior analfabeto é o analfabeto
político. Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos.
Ele não sabe que o custo de vida, do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel,
do sapato e do remédio, depende das decisões políticas. O analfabeto político é
tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia política. Não sabe
o imbecil que da sua ignorância política nasce a prostituta, o menor abandonado
e, o pior de todos os bandidos que é o político vigarista, pilantra, o corrupto
e lacaio dos exploradores do povo”.
Na
verdade, onde concentramos os nossos esforços? Não é necessariamente no social
e sim na vida privada. Quando falamos da vida privada é bom lembrar que ela tem
vários níveis. Podemos falar da vida privada como a minha vida profissional,
onde ganho dinheiro, meus costumes. Falamos da vida privada como meu espaço de
intimidade, onde ninguém tem o direito de invadir e muito menos de dar opinião.
Diferente da vida publica, onde estou exposto e vulnerável a chantagens.
Entretanto,
a intimidade é mais especifico ainda que a vida privada, porque a intimidade
diz respeito a algo que é quase secreto. A vida privada pode ter suas
vantagens, por isso a preferimos. A intimidade pode variar muito conforme a
pessoa. A intimidade não é algo reversível. Enquanto, na minha vida privada eu
posso mudar de emprego, mudar de profissão, mudar de fonte de renda, distanciar
de certas amizades, já aquilo que pertence a minha intimidade não é fácil de
trocar ou mudar. A não ser por vaidade.
Todavia,
o tema vaidade foi abandonado pela filosofia a mais de duzentos anos e nunca
foi assumida devidamente pela psicologia, embora seja tema central na nossa
sociedade. Estudada pelos gregos na antiguidade e até o século XVIII a vaidade
foi objeto de estudo recorrente em todas as épocas. Thomas Hobbes falava da van
gloria, que significa quando meço o meu valor pelos olhares que os outros têm
sobre ele e não pelo meu valor justo. A desumanização dessa percepção é tão
aguda, que torna difícil a gente perceber esse elemento alternativo que é a
vaidade. Extremamente presente na vida social e, sobretudo, no mundo da mídia e
pouco estudada pela filosofia, segundo o filósofo Renato Janine Ribeiro. Ele
argumenta que a psicanálise estudou a fundo o Complexo de Édipo que na verdade
é uma hipótese, e que não se aprofundou o tema da vaidade que é uma evidência.
Está presente o tempo todo no nosso meio, seja no mundo das celebridades, seja
na política ou nas redes sociais.
Por que a
vaidade ameaça a intimidade? Pelo simples fato da intimidade ser algo precioso,
dificilmente deve ser divulgada ou exposta. O mais grave ainda é um fenômeno
complementar a vaidade que é a bajulação. E a bajulação produz um terceiro
fenômeno que é levar o vaidoso acreditar no que dizem a ele. Isso produz um
desgaste na vida pessoal. Para o filósofo Janine, existem duas hipóteses para
esse desgaste da vida pessoal. Primeiro a nossa expectativa na vida pessoal é
muito alta, num nível de satisfação muito elevado, sobretudo, no que diz
respeito à cumplicidade, a paixão, o desejo e a excitação sexual. Segundo, a
crise que sobre nós se abatem, ela com frequência tem como escudo a pessoa que
está próxima de nós, o ponto mais afetado.
Na literatura
jurídica, lemos com frequência casos de pessoas inocentes que responderam
Processos Judiciais, sofrendo injustamente por calunia, difamação e até
perderam seus empregos. Viram pessoas mais próximas se afastarem do seu
convívio, os filhos se distanciaram, em alguns casos, tiveram seus casamentos
defeitos por conta dessa exposição publica. Entretanto, a parte mais afetada
são essas pessoas. Em tese poderiam ficar do nosso lado num gesto de
solidariedade no momento da crise. Mas o nível de tensão é tamanho que acaba
arrebentando na parte mais fraca. A pessoa vitima sente-se vulnerável e sem
apoio nenhum. Nem com os filhos pode contar.
Portanto,
viver em sociedade demanda princípios éticos e morais. O maior perigo do nosso
mundo não está na violência urbana, nem mesmo nos poderosos; está na falta de
alegria de viver das pessoas, no seu tédio, na sua frustração e na sua
indiferença. Relacionar-se com qualidade é também admirar o outro com
maturidade.