Foi
exatamente na madrugada do dia 17 de agosto de 2012, que tive um vislumbre
concreto de que provavelmente não amanheceria vivo, tamanho era a dor que
sentia no abdome. Senti que minha vida poderia encurtar por conta daquela dor.
Foi um rápido insight de que talvez eu tivesse cumprido o meu ciclo, estava na
hora de me retirar de circulação. No entanto, essa retirada poderia ser menos
dolorosa e rápida. Como aconteceu com minha mãe em agosto de 2010. Tomou o seu
banho trocou de roupa, estava preparando para ir ao médico e faleceu nos meus
braços. Tudo muito rápido.
Por
volta das quatro horas da manhã a dor era muito intensa, parecia claro pra mim
que o meu fim estava chegando, pois eu estava sozinho e não tinha a quem
recorrer. Será que eu teria de passar por um processo doloroso, cheio de
sofrimento e perturbando todo mundo a minha volta? Isto jamais acontecerá. Minhas
neuroses, meu mau humor, defeitos que tenho, foi sempre a preocupação de nunca
incomodar ninguém. Tanto é verdade que fui sozinho para o pronto socorro. Não
avisei as pessoas que amo, para poupá-los do sofrimento. Quando lá cheguei fui transferido imediatamente para o Hospital.
O meu estado de saúde era grave. Teria eu de passar pela experiência de
enfrentar a morte, visualizá-la por perto, rondando a minha vida? Desfazer-me
aos poucos naquele momento me apavorava. Pensar que estava deixando pessoas que
amo.
Quando
cheguei ao Hospital, fui levado com urgência para o centro cirúrgico. Nesse
momento tornou-se mais evidente a presença da morte. Da ambulância até a mesa
de operação, foi uma longa caminhada. A caminho do centro cirúrgico, a maca
atravessava por corredores gelados, porém o frio dentro de mim era maior. Por
que demorava tanto para chegar à mesa de cirurgia? Entre uma agulhada e outra,
fui desfalecendo aos poucos, porém ainda sentia um pequeno formigamento nos
pés. O que me apavorava era sobreviver com seqüelas, transformado num vegetal
lúcido, pois já havia passado por uma experiência igual alguns anos atrás com
anestesia geral. Sofri um choque anafilático, uma reação alérgica, de hipersensibilidade
imediata, que afeta o corpo todo, com a diminuição da pressão arterial e
taquicardia em que há risco de morte.
Lutava
contra a morte a cada instante, tinha de chegar intacto à mesa de cirurgia.
Precisava vencer alguns metros de corredor até chegar ao centro cirúrgico.
Naquele momento não sentia mais dor. Só pensava, por que tinha que enfrentar
aquela cirurgia brutal? Por que de repente o mundo virou de ponta cabeça pra
mim? Parecia que o efeito do pré-anestésico não estava funcionando como devia.
Fiquei desperto, curioso e com medo. Chegando a sala de cirurgia, homens e
mulheres de azul, enfermeiras de verde. Pensei, não quero olhar para os
instrumentos cirúrgicos, nem sei onde estão. Como será a cirurgia? Devia ter
perguntado, mas já estou ficando sonolento.
Atordoado,
percebo a movimentação em torno. Tudo muito rápido. Nessa hora você sente que
não é nada diante da morte. De que adianta o orgulho se você precisa dessas
pessoas para continuar vivo? Para os médicos é apenas mais um paciente. A
médica anestesista se aproxima e toma a minha mão esquerda e diz: “é só uma
picadinha e depois mais uma agulhada na coluna e você vai ficar bem”. Imagina,
quem fica bem nessa situação? Após alguns segundos começo a penetrar numa
nuvem. Um rosto claro, um sorriso brilhante, uma voz que me diz: “Sou o médico
que vai te operar tudo bem?” Como tudo bem se estou perdendo a consciência? Nesse
momento salto para o escuro absoluto. Só fui acordar doze horas depois, por volta
das dezenove horas, num leito de pós-operatório. Não sentia meu corpo da
cintura para baixo. Fiquei apavorado, mas logo chegou à médica e descreveu o
sintoma pós-operatório. Entretanto, pude compreender que fiquei na fronteira,
entre a vida e a morte durante o tempo que estive no centro cirúrgico. Após ser
observado por mais de vinte quatro horas, no dia seguinte às 16hs, tive alta.
Portanto,
a vida está cheia de caminhos cujos traçados temos que seguir, sem entendê-los
bem, sem clareza. A maioria das pessoas não se pergunta sobre os caminhos,
atalhos e vertentes pelos quais a vida nos conduz. Este é outro momento forte
de minha vida que me chega nítido, apesar da distância das pessoas que amo. O
que fica é o encontro com o que a vida tem de poético e de fugaz. A vida nos da,
ela nos toma, ela revela, ela esconde, às vezes concede de novo. Fico triste
quando as pessoas julgam sem conhecer a realidade dos fatos. A solidariedade
nasce do meu interesse pelo outro e pela vida como um todo. Contudo, se
readquiri o gosto pela vida, foi porque emanava dela uma força muito grande,
enorme, que me arrancou da acomodação e me fez reerguer. Se hoje sou um novo
homem é porque reconheço a minha fragilidade e impotência diante dos percalços
da vida. Precisei passar por tudo isso para compreender o que é viver
intensamente o dom da vida.
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